Naquele dia usou seu melhor par de abotuaduras. As que ganhara do velho amigo Manuel Queiroz .Trajáva-se na cama, o corpo desgastado doía como um todo. Olhava as própias coxas, enrrugadas e brancas...trêmulas e cheirando à pele velha. Recordou dos tempos em que jogava futebol... do tempo em que não precisava medir cada movimento para não partir os óssos.
Levantou-se, de chinélos. Há anos que a saúde não lhe permitia a convivência com a friagem. Caminhava lentamente, auxiliado pela bengala que comprou ao fazer 67. Ziguezagueava... os joelhos, trêmulos, não lhe permitiam os caminhos retos. "Paciência..." pensava... ,com a habitual resignação cultivada a partir dos 65. Como toda gente velha, acordara antes de nascer o dia... Ao perceber a chegada dos primeiros ráios de sol, que se esgueiravam entre as frestas da janela, somou, aos 86, mais um ano de vida.
Encarou-se no espelho, comprado pela falecida esposa Matilda, enquanto esperava aquecer a água da pia do banheiro. Reparou em algumas marcas e rachaduras, causadas pelo vapor dos banhos já tomados. Recordou-se de quando fazia a barba e, ao mesmo tempo, pelo reflexo do espelho, espiava a mulher vestir-se. De quando apalpava-lhe os seios e a bunda, para ver-lhe a expressão envergonhada, mas desejosa, através daquele mesmo espelho. Lavou o rosto, com águas de solidão e de saudade.
O relógio marcava 6 da manhã. De acordo com a rotina já há muito estabelecida, deveria sair para comprar pão e o jornal do dia. Era assim que assegurava, a sí mesmo, uma pequena quota de ar fresco e socialização. Na padaria, encontráva-se com os amigos que restaram. Falavam de remédios, de uma nova dor, de como lhes faltava o sono. Despediam-se...
Colocou-se porta a fora. Esperou alguns segundos, preciosos, para sentir no rosto o gracioso afago da manhã, do vento e do sol (foi preciso alguns anos, já na velhice, para aprender a valorizar os pequenos momentos), esperou também para acostumar-se com o mundo, agora muito mais veloz do que conseguia acompanhar. As barulhentas motos, os carros e as buzinas, as pessoas dependuradas em suas vidas ao telefone, caminhando velozmente, no meio de tudo que lhes era indiferente, inclusive ele.
Vagou, lentamente, pela rua. Caminhava junto ao muro das casas e prédios para não atrapalhar o rítimo do mundo. Quinze minutos depois, e à cem passos de casa, chegou à panificadora. Saudou a todos: Miguel, o padeiro, João Maria e Otávio, os amigos.- "E então... e o Manuel"... disse meio afirmando, meio indagando. "Poisé..." Responderam... " Partiu..." Suspirou... olhou para os amigos e dessa vez não houve pequenas conversas sobre bulas e doenças.Tremeu-lhe o queixo. Desrespeitáram-lhe a vontade os olhos marejados...
"É...é a vida..." disse... " É... é a vida..." responderam.
7 comentários:
Adorei esse texto arturzito!
que sensibilidade...poxa!
continue escrevendo que continuarei lendo.
beejo
que sensibilidade mesmo.. parabens!
muito interessante, deveras.
dá vontade de que houvesse mais a ser lido.
Eu também fiquei com vontade de trabalhar mais esse texto, meu bom e velho amigo Zé.
Farei isso. Vou ver até onde ele me leva.
Valeu!
morreu?
Nossa...muito bom o texto. Me deu vontade de ler mais...Deu até para imaginar todas as descrições a medida que eu lia.
Muito interessante.
Abr
Obrigado Thiago. Então, como você chegou ao blog? Que bom que gostou do texto. Volte sempre,
abraço,
Artur
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