segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Piano Negro

Foi naquele momento que eu descobri que seria uma pessoa diferente. O frio doloria cada pedaço de osso do meu corpo aumentando o sentimento de pena que sentia de mim mesmo. As ruas vazias do centro da cidade recordavam-me que o dia seguinte seria feriado e a única razão que me tirou de casa foi ter nos lábios o último cigarro que me aquecia a boca.


Sozinho, contemplando as fachadas dos estabelecimentos comerciais, observava meu corpo disforme passar de vitrine em vitrine ora esguio ora alargado expandindo meu corpo comprimido, cárcere de minhálma. Foi quando uma coisa estranha aconteceu, um incômodo na boca do estômago que subiu para a garganta e logo se transformou em uma tosse que não queria sair, restando o comichão que pedia para ser arrancado dalí, com as mãos se necessário. Tentei forçar a tosse, apoiei uma das mãos na porta metálica de segurança de uma loja de roupas, enquanto encurvado enfiava o dedo médio garganta a baixo, parei antes que o vômito viesse.

A agonia me fazia transpirar, um suor gelado que mal brotava na testa grudava frio na pele. Minhas mãos tremiam e por mais que soubesse que estava a poucos quarteirões longe de casa, parecia que andava a horas. Entrei no Café Piano Negro, onde diaramente, há quinze anos, comprava um maço de Português Azul e tomava um expresso. Mas não naquele dia. Olhei como se fosse novidade cada canto daquele estabelecimento que me era tão familiar. Foi indo lá, diariamente nesses quinze anos, que fiquei amigo do dono, Armindo, um sujeito boa praça de sorriso fácil e olheiras largas oriundas do rítimo pesado de trabalho. De segunda a segunda das 7 à meia noite.

Armindo tinha a incrível habilidade de identificar hábitos. Como o da D. Conceição, que lá ia há mais de trinta anos e nos últimos dez sem o marido. Sentava-se sempre na mesma mesa, junto à janela, de costas para a porta, e lá ficava das 15h às 15h45. Primeiro uma sopa de legumes, pães de alho em seguida e torta de maçã. Observava as pessoas passarem com olhos do passado, entre lembranças distantes e o infantil espanto com as peripécias do que é novo. Ao terminar, limpava os lábios com guardanapo de pano que continha as iniciais suas e do marido. Sobre a mesa exatos €6,50.

Custasse o que custasse, todos os dias junto à janela, a mesa de dona Conceição era sumariamente liberada às 14h55 e a sopa de legumes posta sobre a mesa às 14h58. D. Conceição gostava da sopa um pouco mais fria, não lhe comprazia o vapor fumegante que embaçáva-lhe os óculos.

A verdade é que Armindo era também uma pessoa de hábitos e isso se refletia no esforço que fazia para manter o dos outros. Talvez seja por isso que cultivasse melhor esse tipo de cliente e se cercasse deles. De certa forma era como garantir que os dias estariam sempre nos eixos. Ironicamente, nesse mesmo dia em que me senti diferente, tomado de estranho desconforto, a D. Conceição se atrasou pela primeira vez. Que também seria a última. A inquietação de Armindo era notável, recolhia a sopa gélida da mesa às 15h50, colocando-a na pia para atender-me em seguida. Ele já sabia o que se passava... essas pessoas de antigamente... No silêncio natural de quem acabara de entrar em luto esboçou fraco sorriso, também breve, e estendeu-me o maço de Português Azul. Pude notar a rija mão, com manchas da idade, calejadas pelo trabalho. Os cançados olhos azuis hoje tinham menos brilho. Foi quando pedi o maço de Português Vermelho acompanhado do expresso duplo e constrangi-o em sua estimada habilidade, já pela segunda vez no mesmo dia. Não disfarçou a tristeza.

4 comentários:

zero disse...

depois de descobrir que a personagem realmente existe o texto ficou ainda mais interessante. E fico me perguntando quais hábitos se tornaram tão fortes em mim que seria difícil sobreviver sem eles.

Dono do Buteco disse...

Poisé. Tem hábitos que somos conscientes deles e outros que não. Os que não somos conscientes estão presentes em tudo. Na cor que preferimos, no jeito de nos portarmos à mesa. De maneira geral pode-se atribuir isso tudo às nossas tradições. Dieta precisa das nossas ações cotidianas. Em fim, Tradição é um cárcere sem chave que tem a função de nos dizer quem somos.

João disse...

Belo texto.

Thiago Costa disse...

Texto muito bom, mas achei triste.