terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Memórias de uma infância

Era daquelas figuras que na memória infantil não tem rosto. Lembrado das pernas pra baixo e pelas mãos que nos carrega do que é errado para o que está certo. Esse era o meu avô. Tinha sobrenome Rosa, mas o que me lembro era de uma velha camisa amarela com cheiro de fumo de rolo, daqueles vendidos no Mercado Central de Goiânia.


Certa vez o fogão-a-lenha trepidava em chama. A fumaça no ar carregava o sabor do feijão e sobre a mesa canivete, pano, fumo e as mãos do meu avô. Puxado terra a cima fui parar em seu colo e então já podia ver as penelas sobre o fogão e os objetos na mesa, dispojados em pano vermelho.

As mãos ásperas, rijas, carregavam os calos da vida. Meu avô era guarda noturno, mas as pessoas daquela época, na verdade, eram tudo o que o trabalho exigisse. Suas unhas groças e mal cortadas carregavam nos cantos a sujeira do fumo que lhe agradava. Com uma das mão segurava o fumo, com a outra cortáva-o com canivete vermelho de marca nacional. Um dos presentes dos filhos. Meu avô gostava de três coisas, canivetes, lenços de pano e ferramentas. Sendo eu o neto mais novo da família, nascido de sua filha mais nova, herdei privilégios já mais dados aos outros. Também porquê o tempo amacia as pessoas tal como santo remédio, que, nem por isso, deixa de ser amargo. Em fim, eu era o único que lhe acompanháva em suas tarefas diárias e podia fazer de brinquedo os três tipos de objetos dantes intocáveis.

O fumo agora, todo picotado, foi embrulhado em pano branco. Encardido pelos fumos anteriores. No meu ouvido, o som da áspera voz me ensinava coisas que já não me lembro. Bateu forte com um pequeno martelo, roubado da cozinha, o pano encardido. Sabia que era roubado porque me lembro da minha avó ralhar lá da cozinha. Dizia qualquer coisa como “o que é pra comida não pode ser para outra coisa”.

Eu sei que aquilo alí deveria virar pó. Fino e forte, chamado rapé. O nome aprendi anos depois. Mas a sensação de espirrar até quase perder o nariz lembro-me bem. Da voz sem rosto ouvia gostosa risada, daquelas que balançam a barriga. Da cozinha, o ralhar da vó:

– Rosa! Tá dando rapé pro menino de novo? Já falei pra parar com isso! O menino já tá com o nariz todo vermelho...

Nunca aprendi a fazer rapé.

Como que numa viagem do tempo, feita em memória infantil, sou transportado para o velório do meu avô. Anos depois, lágrimas na porta do Mercado Central.

3 comentários:

Sônia disse...

Imagens que transportam, levam lágrimas aos olhos e aperto na garganta... suas palavras e imagens despertaram em mim recordações de minha infância com seus sons, cheiros e vozes... gostei muito de seu poema!

Unknown disse...

Artur, meu filho, adorei seu texto: simples, direto e muito poético. Você soube perceber poesia na vida simples de seus avós. Que bom que você manteve intactas a memória, a percepção da sua infância, junto ao seu avô! A eles. Você teria gostado da avó Orlandina também!

E quando os balões desceram no Conj. Fabiana! Momento mágico, não? As cores, as formas e os movimentos (trajetórias) dos balões, e o seu avô com a velha blusa amarela, guardando o barrigão. Lembro que vocês ficaram deslumbrados com essa vivência. Afinal, a vida não é isso? Momentos mágicos! Há que ter os sentidos abertos para perceber. Por isso, amamos tanto o centro da cidade, os sebos, os brechós, a campininha, Piripa e tantos outros lugares mágicos de nosso país. Sem dúvida, a infância é um terreno fértil. O livro do Flávio "Passe de letra", aborda momentos da infância dele, muito legais. Ao lê-lo, senti-me também transportado para minha infância, assim ocorreu com a leitura de seu texto. São tantas lembranças interessantes, né? E você transformando-as em escrita para outras pessoas. Escrevendo-as de forma poética. Gostei. Faça isso. Escrever é também uma forma de estar e lutar no mundo. Leia o livro "Confesso que vivi", de Neruda. É lindo! Leia Drummond, Bandeira, Thiago de Melo, escritor do Amazonas, amigo de Neruda, Manoel de Barros, Guimarães Rosa... Leia, leia, leia e viva, viva, viva a vida com gosto! Com paixão, com ética, com amor! Então, você terá material concreto para tranformar em arte literária. Parabéns!

Um beijão prá você e prá Elisa!

Ataíde Felício.

Thiago disse...

Muito legal o texto...fico lembrando dos livros que eu lia para o vestibular.
Muito legal.