quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Quando passa o tempo

Naquele dia usou seu melhor par de abotuaduras. As que ganhara do velho amigo Manuel Queiroz .Trajáva-se na cama, o corpo desgastado doía como um todo. Olhava as própias coxas, enrrugadas e brancas...trêmulas e cheirando à pele velha. Recordou dos tempos em que jogava futebol... do tempo em que não precisava medir cada movimento para não partir os óssos.

Levantou-se, de chinélos. Há anos que a saúde não lhe permitia a convivência com a friagem. Caminhava lentamente, auxiliado pela bengala que comprou ao fazer 67. Ziguezagueava... os joelhos, trêmulos, não lhe permitiam os caminhos retos. "Paciência..." pensava... ,com a habitual resignação cultivada a partir dos 65. Como toda gente velha, acordara antes de nascer o dia... Ao perceber a chegada dos primeiros ráios de sol, que se esgueiravam entre as frestas da janela, somou, aos 86, mais um ano de vida.

Encarou-se no espelho, comprado pela falecida esposa Matilda, enquanto esperava aquecer a água da pia do banheiro. Reparou em algumas marcas e rachaduras, causadas pelo vapor dos banhos já tomados. Recordou-se de quando fazia a barba e, ao mesmo tempo, pelo reflexo do espelho, espiava a mulher vestir-se. De quando apalpava-lhe os seios e a bunda, para ver-lhe a expressão envergonhada, mas desejosa, através daquele mesmo espelho. Lavou o rosto, com águas de solidão e de saudade.

O relógio marcava 6 da manhã. De acordo com a rotina já há muito estabelecida, deveria sair para comprar pão e o jornal do dia. Era assim que assegurava, a sí mesmo, uma pequena quota de ar fresco e socialização. Na padaria, encontráva-se com os amigos que restaram. Falavam de remédios, de uma nova dor, de como lhes faltava o sono. Despediam-se...

Colocou-se porta a fora. Esperou alguns segundos, preciosos, para sentir no rosto o gracioso afago da manhã, do vento e do sol (foi preciso alguns anos, já na velhice, para aprender a valorizar os pequenos momentos), esperou também para acostumar-se com o mundo, agora muito mais veloz do que conseguia acompanhar. As barulhentas motos, os carros e as buzinas, as pessoas dependuradas em suas vidas ao telefone, caminhando velozmente, no meio de tudo que lhes era indiferente, inclusive ele.

Vagou, lentamente, pela rua. Caminhava junto ao muro das casas e prédios para não atrapalhar o rítimo do mundo. Quinze minutos depois, e à cem passos de casa, chegou à panificadora. Saudou a todos: Miguel, o padeiro, João Maria e Otávio, os amigos.- "E então... e o Manuel"... disse meio afirmando, meio indagando. "Poisé..." Responderam... " Partiu..." Suspirou... olhou para os amigos e dessa vez não houve pequenas conversas sobre bulas e doenças.Tremeu-lhe o queixo. Desrespeitáram-lhe a vontade os olhos marejados...

"É...é a vida..." disse... " É... é a vida..." responderam.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Boca de fome

Acende o cigarro.

Olha pela janela a rua, vazia, molhada pela chuva. Nota a marca mais clara que ficou dos carros que já partiram, e que é o último a ter luz no quarto. Apoia-se no parapeito, chora... em silêncio. Queria ser um escritor, um cineasta, estrela pornô, pai de família, um qualquer, mas ainda assim sobra-lhe o apetite. É só disso que se trata, do apetite, sem fim, que lhe mastiga as boas idéias antes que surjam.

Dói-lhe o estômago. Sente fome.

Mas é só disso que se trata, do apetite. Já não quer ser nada do que pensara. Quer ser músico, artista plástico, professor, carpinteiro.

Senta-se na velha poltrona. Acende outro cigarro. Pede para a puta outra deitada. Sente-se só, tem saudades, é o último a ter luz no quarto. Pede a ela, gentilmente, que se vá. Repousa os olhos cansados em sua nudez "vejo-te amanhã?" suspira... "São 400 reais por hoje, posso vir amanhã se desejar". Já não a quer, diz que tudo bem, mas vai ligar para outra.

É só disso que se trata, do apetite, sem fim, que lhe consumiu por mais uma noite voraz.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Dê o título você mesmo

Apavorados com o desconhecido, nos escondemos por de trás da moral. É com rígido senso de certo e errado que escolhemos caminhos, ou escolhem por nós. Inevitável lembrar da cena de Fight Club, quando Tyler Durden diz que gostaría de lutar com o próprio pai. Figura com a qual relacionáva-se em específicos momentos de decisão na vida. “- Pai, o que faço ? Vá para a faculdade! Terminei minha graduação, o que faço agora? Arranje um emprego! Consegui o emprego e já sou bem sucedido, e agora? Eu não sei, Case-se!”


Ter as coisas no lugar certo, a tempo e a hora, nos faz ter a sensação de que a vida segue seu curso em trilhos seguros. O problema é que, na maioria das vezes, se perguntar para o maquinista onde gostaria de ir, ele não saberia dizer. Sorte é se souber, que destino tem, o trem que já partiu.

Eu mesmo prefiro andar a pé.

e então pela janela vemos passar o dia, esperando que da boca sem voz saia um grito de angústia... ou qualquer coisa que faça sentido.

Sem rumo, asfixiado, indeciso, qualquer senso de religião sempre tem uma resposta para o que fazer. Em nenhuma delas lhe é conveniente fazer algo diferente do que já foi escrito. Vê?! Assim inventou-se a moral, para que toda história tenha uma.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Memórias de uma infância

Era daquelas figuras que na memória infantil não tem rosto. Lembrado das pernas pra baixo e pelas mãos que nos carrega do que é errado para o que está certo. Esse era o meu avô. Tinha sobrenome Rosa, mas o que me lembro era de uma velha camisa amarela com cheiro de fumo de rolo, daqueles vendidos no Mercado Central de Goiânia.


Certa vez o fogão-a-lenha trepidava em chama. A fumaça no ar carregava o sabor do feijão e sobre a mesa canivete, pano, fumo e as mãos do meu avô. Puxado terra a cima fui parar em seu colo e então já podia ver as penelas sobre o fogão e os objetos na mesa, dispojados em pano vermelho.

As mãos ásperas, rijas, carregavam os calos da vida. Meu avô era guarda noturno, mas as pessoas daquela época, na verdade, eram tudo o que o trabalho exigisse. Suas unhas groças e mal cortadas carregavam nos cantos a sujeira do fumo que lhe agradava. Com uma das mão segurava o fumo, com a outra cortáva-o com canivete vermelho de marca nacional. Um dos presentes dos filhos. Meu avô gostava de três coisas, canivetes, lenços de pano e ferramentas. Sendo eu o neto mais novo da família, nascido de sua filha mais nova, herdei privilégios já mais dados aos outros. Também porquê o tempo amacia as pessoas tal como santo remédio, que, nem por isso, deixa de ser amargo. Em fim, eu era o único que lhe acompanháva em suas tarefas diárias e podia fazer de brinquedo os três tipos de objetos dantes intocáveis.

O fumo agora, todo picotado, foi embrulhado em pano branco. Encardido pelos fumos anteriores. No meu ouvido, o som da áspera voz me ensinava coisas que já não me lembro. Bateu forte com um pequeno martelo, roubado da cozinha, o pano encardido. Sabia que era roubado porque me lembro da minha avó ralhar lá da cozinha. Dizia qualquer coisa como “o que é pra comida não pode ser para outra coisa”.

Eu sei que aquilo alí deveria virar pó. Fino e forte, chamado rapé. O nome aprendi anos depois. Mas a sensação de espirrar até quase perder o nariz lembro-me bem. Da voz sem rosto ouvia gostosa risada, daquelas que balançam a barriga. Da cozinha, o ralhar da vó:

– Rosa! Tá dando rapé pro menino de novo? Já falei pra parar com isso! O menino já tá com o nariz todo vermelho...

Nunca aprendi a fazer rapé.

Como que numa viagem do tempo, feita em memória infantil, sou transportado para o velório do meu avô. Anos depois, lágrimas na porta do Mercado Central.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Bill Clinton toca Blues


Nunca subestime uma madrugada de insônia.


Vou transformar isso em lei.

Bêbado de tanta Coca-cola, e isso pode matar, já era esperado uma certa dificuldade para cair no sono. Por isso deveria reescrever o começo do texto e não chamar isso de insônia. Mas correções ficam pra depois. Não se deve contrariar uma pessoa nesse estado. Ok. Sem sono, o que fazer? Nada como música para relaxar. Tentei Rolling Stones, Cooper, não, não saí me exercitando pela cidade de madrugada, Alice Cooper, haha, piadinha joinha. Prevendo que nenhuma canção de acalanto sairia dalí, apelei pro blues.

Clapton... comecei a pensar em todas as realezas, mas a imprudência pedia Hendrix. Depois Slash vs. Handrix. Continuando nessa perspectiva de apreciar titãs em palco, trouxe aos ouvidos Clapton e BB King, dois monstros dividindo o mesmo palco. Lembrei-me do bom e Velho John Lee Hooker, com seus solos e acordes sem palheta, negros dedos calejados e voz potente, impressionante se pensarmos que vem de tal miúdo homem. Depois de ouvir algumas canções exclusivas dessa lenda, ouví-o juntamente com Carlos Santana. Bom material.

Logo a seguir o momento infame. Vejo eu Bill Clinton, sim minha gente, o ex-presidente estadunidense Bill Fucking Clinton, com um saxofone na boca, categorizado pelos vídeos do youtube entre os deuses do blues. Não pude acreditar nos meus olhos e questionei minha sanidade, considerando que tinha consumido 1,5l de Coca-Cola...sozinho. Duvidei por mais alguns segundos... ponderei se clicava ou não. Ver aquela cara gorda rosada, principalmente no nariz e nas bochechas, cabelos brancos e cara de “Calma querida, não é o que você está pensndo” não parecia fornecer grande coisa em troca.

Cliquei no vídeo. Afinal, criatividade é uma coisa que se tem que apreciar de madrugada.

Um palco repleto de blues-mens. Clinton abraça alguns deles e acaba pegando um saxofone. Meu Deus, eu sou do tipo de cara que sente vergonha alheia e confesso que nesse momento eu fiquei tenso. Já fiquei esperando qualquer coisa cafona, tipo Kenny G. (como eu odeio esse cara... mas isso fica pra depois, ou não), e o que acontece é que o cara realmente toca. Ele consegue acompanhar a banda e faz um solo que, o que posso dizer, superou minhas expectativas. Se quiserem o link: http://www.youtube.com/watch?v=Alv7N6Ynm1Y&feature=related
Como eu já ia dizendo...nunca subestime uma madrugada de insônia.

Ao terminar o vídeo, apareceram muitos outros com o cara metendo a boca no saxofone. Bem, é o que eu também digo: se foi surpreso positivamente por alguma coisa, mantenha-se satisfeito. Não seguindo meus próprios conselhos, abrí o vídeo seguinte para avaliar o estilo musical do cara. A conclusão é que eu realmente odeio o Kenny G.

Piano Negro

Foi naquele momento que eu descobri que seria uma pessoa diferente. O frio doloria cada pedaço de osso do meu corpo aumentando o sentimento de pena que sentia de mim mesmo. As ruas vazias do centro da cidade recordavam-me que o dia seguinte seria feriado e a única razão que me tirou de casa foi ter nos lábios o último cigarro que me aquecia a boca.


Sozinho, contemplando as fachadas dos estabelecimentos comerciais, observava meu corpo disforme passar de vitrine em vitrine ora esguio ora alargado expandindo meu corpo comprimido, cárcere de minhálma. Foi quando uma coisa estranha aconteceu, um incômodo na boca do estômago que subiu para a garganta e logo se transformou em uma tosse que não queria sair, restando o comichão que pedia para ser arrancado dalí, com as mãos se necessário. Tentei forçar a tosse, apoiei uma das mãos na porta metálica de segurança de uma loja de roupas, enquanto encurvado enfiava o dedo médio garganta a baixo, parei antes que o vômito viesse.

A agonia me fazia transpirar, um suor gelado que mal brotava na testa grudava frio na pele. Minhas mãos tremiam e por mais que soubesse que estava a poucos quarteirões longe de casa, parecia que andava a horas. Entrei no Café Piano Negro, onde diaramente, há quinze anos, comprava um maço de Português Azul e tomava um expresso. Mas não naquele dia. Olhei como se fosse novidade cada canto daquele estabelecimento que me era tão familiar. Foi indo lá, diariamente nesses quinze anos, que fiquei amigo do dono, Armindo, um sujeito boa praça de sorriso fácil e olheiras largas oriundas do rítimo pesado de trabalho. De segunda a segunda das 7 à meia noite.

Armindo tinha a incrível habilidade de identificar hábitos. Como o da D. Conceição, que lá ia há mais de trinta anos e nos últimos dez sem o marido. Sentava-se sempre na mesma mesa, junto à janela, de costas para a porta, e lá ficava das 15h às 15h45. Primeiro uma sopa de legumes, pães de alho em seguida e torta de maçã. Observava as pessoas passarem com olhos do passado, entre lembranças distantes e o infantil espanto com as peripécias do que é novo. Ao terminar, limpava os lábios com guardanapo de pano que continha as iniciais suas e do marido. Sobre a mesa exatos €6,50.

Custasse o que custasse, todos os dias junto à janela, a mesa de dona Conceição era sumariamente liberada às 14h55 e a sopa de legumes posta sobre a mesa às 14h58. D. Conceição gostava da sopa um pouco mais fria, não lhe comprazia o vapor fumegante que embaçáva-lhe os óculos.

A verdade é que Armindo era também uma pessoa de hábitos e isso se refletia no esforço que fazia para manter o dos outros. Talvez seja por isso que cultivasse melhor esse tipo de cliente e se cercasse deles. De certa forma era como garantir que os dias estariam sempre nos eixos. Ironicamente, nesse mesmo dia em que me senti diferente, tomado de estranho desconforto, a D. Conceição se atrasou pela primeira vez. Que também seria a última. A inquietação de Armindo era notável, recolhia a sopa gélida da mesa às 15h50, colocando-a na pia para atender-me em seguida. Ele já sabia o que se passava... essas pessoas de antigamente... No silêncio natural de quem acabara de entrar em luto esboçou fraco sorriso, também breve, e estendeu-me o maço de Português Azul. Pude notar a rija mão, com manchas da idade, calejadas pelo trabalho. Os cançados olhos azuis hoje tinham menos brilho. Foi quando pedi o maço de Português Vermelho acompanhado do expresso duplo e constrangi-o em sua estimada habilidade, já pela segunda vez no mesmo dia. Não disfarçou a tristeza.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Blog

José Saramago afirmou, certa vez, que escrever em blogs não faz de uma pessoa escritora. Para mim, manter um blog é uma espécie de narcisismo verborrágico. E dizer isso não faz de mim um hipócrita. Fiquei esperando algumas horas para ver, se depois de breve divulgação, ganhava um comentário ou dois. Nada. Acho que devo me acostumar.
Foi então que percebi a pertinência do título atribuído por Vandré Abreu ao seu blog -"Para Paredes". Ainda não conversei com o autor sobre o título, mas para mim parece ser bastante óbvio. Já estive dos dois lados da moeda. Quando me pediam para comentar em blog, pensava: Má que diabo, tenho uma falta de paciência de ficar lendo essas coisas e ter que comentar, não basta ler? Sempre lia e comentava com a própria pessoa e às vezes me diziam, "ah.. então comenta lá o que você acabou de me dizer..." Do lado de cá da moeda percebo que o comentário faz parte do próprio sentido de se manter um blog. Dedico essas linhas aos meus comentários não feitos e ao narcisismo verborrágico.

O Buteco

Não me responsabilizo pelos danos morais causados pela leitura desse Blog. Não que eu esteja aqui pra falar mal das pessoas. Acho que comi algumas coisas que me fizeram mal e acabei tendo uma grande e irrecuperável indigestão. Só que dessa vez não vou culpar a pobre da azeitona de empadinha. Essa história deve ter colocado a fama das coitadas em baixa e de forma injusta.



O vômito será peculiar, meio parecido com Rubem Fonseca, Saramago ou até mesmo Hank Moody, ainda que o último seja apenas um conceito, um personagem. Não quero dizer que estarei sempre com pedras nas mãos, já me disseram que alterações de humor é normal levando-se em conta o que comemos. Até porque é um saco ler aquelas pessoas que se dizem ativistas e rosnam o tempo inteiro. Talvez nem devesse começar isso aqui. Quanto mais escrevo percebo que não existe um propósito real, a não ser o fato de que no momento não faço idéia do que fazer da vida. Com certeza devo estar me juntando ao clube de muitas pessoas no momento. Que tipo de pessoa sonha em concluir a graduação, para fazer mestrado e doutorado, dar aulas e, com o dinheiro ganho, abrir um buteco? Poisé. Quem sou eu pra julgar... levando em consideração de que se trata de mim mesmo, calha com a generalizada concepção de que não somos os melhores juízes dos nossos atos, ou que simplesmente não o fazemos. Isso também explica muita coisa.


Talvez fosse o caso de criar um personagem. Sim. Talvez seja inédito. Não. Acabei de me lembrar dos perfis fakes de orkut e tudo que tenha na internet hoje em dia. Em fim, talvez seja o caso de criar um personagem que esteja escrevendo esse blog livre das pressões do cículo de pessoas que conhece. E de culpa. Faz sentido, culpa é um fator limitante de muita coisa na vida.


Tenho que controlar meus pensamentos megalomaníacos. Essa pequena e inconclusa idéia já transformou-se em um personagem de livro que mantém um blog cujos textos do personagem fixional podem ser lidos na internet. Acho que é novo isso. Não me lembro de ter visto em outro lugar. Pronto, vou virar escritor e largar tudo! Menos o buteco.